A vida humana é composta por elementos que muito se assemelham a um teatro. Há o elenco, o figurino, o roteiro, o drama, muitas vezes a comédia, ou a mentira disfarçada de verdade, bem como a verdade inserida em uma encenação proposital.

O teatro e a vida humana possuem semelhanças em que muitos elementos caricaturizam e dramatizam ou mesmo representam a vida humana fielmente.

Com isso, quero dizer que a visão humana se limitaria a elementos que representam uma realidade, ou parte dela, mas que não correspondem à própria realidade em si na maior parte do tempo.

As ciências buscam há séculos aproximar o homem da Verdade. Entretanto, nenhum conjunto de ideias, ciência, sistema filosófico, doutrina ou corpus de conhecimento, jamais foi ou será capaz de descrever a realidade tal qual ela é, nua e crua. Só é possível pintar uma caricatura, ou descrever uma parcela da mesma.

Quase sempre podemos estar redondamente enganados sobre algo que julgamos conhecer, pois ao tornar-se um “algo” o objeto observado já está classificado com base em categorias nos escaninhos internos de nossas experiências pretéritas. Deste modo, o que aparece para nós já não é mais o objeto real que auscultamos, mas sim a sua representação perante nosso filtro pessoal.

O QUE PERCEBEMOS QUASE SEMPRE NÃO É O QUE, DE FATO, ESTÁ SOB NOSSOS OLHOS, POIS SOMOS O TEMPO TODO COMO UM FILTRO MOLDADO POR NOSSAS EXPERIÊNCIAS, CRENÇAS E LIMITAÇÕES.

Teatro da vida humana

Na verdade, pode-se dizer que a vida humana é composta por múltiplas peças de teatro, incontáveis, cada uma com suas regras do jogo, atores e atrizes, práticas e ilusões, ou verdades, ou os dois misturados de uma forma complexa. Todas, em suas diferenças, no entanto, tem sua origem nas mesmas coisas. Ou, para dizermos melhor, na objetivação das coisas.

Objetivação, como definida dentro do hegelianismo, é o “processo no qual a consciência humana experimenta uma alienação de sua real natureza subjetiva, projetando-se em objetos e construindo a realidade externa” (Oxford Languages).

O cérebro humano funciona a partir da organização de memórias através de associações entre elas. Por isso, no decorrer da vida experienciamos uma crescente objetivação do mundo que vamos passando a conhecer, tornando seus elementos no que Buber chamava de um isso, ou seja, uma coisa, um objeto, uma mera representação que nada representa se não uma pequena parte da realidade total do objeto.

Além disso, ao associarmos a nossa própria realidade íntima a um isso, seja ele nosso próprio corpo, nossas roupas, o carro ou a casa que possuímos, o cargo pelo qual nos responsabilizamos, ou uma imagem distorcida de nós mesmos, passamos a viver uma espécie de autoilusão. Buber afirma que:

“A FICÇÃO POR MAIS NOBRE QUE SEJA, NÃO PASSA DE UM FETICHE; O MAIS SUBLIME MODO DE PENSAR, SE FOR FICTÍCIO, É UM VÍCIO.”

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Teatro e Realidade

A vivência da relação autêntica com o mundo a nossa volta, seja com o outro, ou com a natureza, e até consigo mesmo (a vivência da relação dentro da palavra princípio Eu-tu de Buber), é indivisível, inclassificável, indefinível, dispensando quaisquer prejulgamentos, preconceitos, incompreensões, ou o ódio.

Ela representa a relação com a totalidade da realidade com a qual estamos em contato, seja ela relacionada ao nosso mundo interno ou externo. Ela não pode ser, portanto, simples representação ou caricatura.

Alguns homens escolhem por vontade própria viver sob um sistema de crenças, um conjunto de preceitos ou ditames morais, sempre limitados, que o conferem a capacidade de olhar o mundo sob uma ótica mais confortável, portanto, objetivando-o.

Classifica as pessoas e as coisas em grupos, em escaninhos específicos onde se encontram os daquele “tipo”, constando as informações necessárias para torná-los mais palatáveis, como: boas ou ruins, más ou benignas, certas ou erradas, inteligentes ou burras, respeitáveis ou indignas de respeito.

A partir daí, dado o contato com todo e qualquer tu, a experiência real não é alcançada, transformando-o em um isso, pois ignora-o em sua totalidade, percebendo apenas uma parte dela, ou algo que nem sequer corresponde a nenhuma parte dela.

Realidade e a influência do meio

A religião, a cultura de cada grupo, os tradicionalismos, a falta de estudo, ou o estudo prolífico dentro de um viés insensato, ou de um único viés por mais sensato que seja, as manipulações diversas, os interesses fúteis individuais, as psicopatologias, as psicopatias e perversidades de grandes líderes, e dos liderados, o senso comum, os cultos à ignorância, o pensamento bitolado da cultura das cidades interioranas, dentre outros, são exemplos de mecanismos que nos distanciam muito da realidade, pois são por si só, em geral, um grande amalgamado de ilusões.

É possível nos aproximarmos da verdade na medida em que confrontamos aquilo em que acreditamos com ideias opostas. A imersão completa em um perfil ideativo totalmente diferente torna possível a análise da mesma coisa por prismas diferentes, ambos correspondendo a uma parcela da realidade, por mais opostos que sejam entre si.

Com imersão completa quero dizer a total abertura para adentrar ao modus ratiocinandi do outro, dando-se a oportunidade de “acreditar” por um instante naquilo que está sendo dito, com toda sinceridade, ou seja, colocar-se no lugar do outro e sentir o que o outro sente em relação a determinado tópico, por mais contrárias que suas ideias sejam as da outra pessoa. É o ad argumentandum tantum em ação.

Hegel, precursor do pensamento dialético, propôs um sistema espiral de construção do conhecimento no qual uma ideia, a tese, é confrontada com outra, a antítese, para alcançar uma conclusão, a síntese, que por sua vez torna-se automaticamente uma nova tese, sendo, portanto, um processo infinito de evolução da ideia.

NENHUMA LINHA DE CONHECIMENTO É CAPAZ DE RETRATAR A VERDADE TAL QUAL ELA É, SEM FILTROS. APENAS A CONFRONTAÇÃO DE OPINIÕES DIVERGENTES É CAPAZ DE DAR ORIGEM A ALGO MAIS PRÓXIMO
DESTA REALIDADE

Quando reduzimos o Tu a um Isso estamos sujeitos a cometer atos que venham a ferir a nós mesmos e aos outros, o que nos distancia de nossa realidade primordial, a natureza das coisas, o amor cósmico, o zhong iong de Zisi.

Você já parou para refletir sobre o que o faz tomar determinada posição em relação a algo ou alguém, ou a dedicar-se a determinada atividade em sua vida?

Isto parte de uma vivência concreta de reflexão, mais próxima da palavra princípio Eu-tu, ou simplesmente do ímpeto irrefletido em aderir a algo dentro da relação Eu-isso em seu caráter público, social?

Incoerências sociais

As incoerências e hipocrisias de todos os tipos surgem a partir do momento em que não existe o alinhamento entre os princípios ditos adotados e a real reflexão sobre o próprio pensar e o porquê de se pensar de determinada forma.

Sócrates, durante um momento de crise em Atenas, interrompia os cidadãos enquanto trabalhavam para questioná-los. As respostas traziam os preconceitos, regras de conduta, padrões e convenções, os quais jamais podiam resistir ao vento do pensamento trazido pela maiêutica socrática.

Para Arendt, seria impossível viver o tempo todo em um estado de alerta capaz de propiciar este escrutínio contínuo dos próprios pensamentos através da reflexão, entretanto, para a autora, a irreflexão seria um grande problema, pois segundo ela as pessoas que se guiam pelas normas, códigos e regras são os primeiros a aderirem a novas normas, códigos e regras. Ilustra com o fato de que durante o nazismo o código “não matarás” foi rapidamente substituído pelo código “matarás”.

Para Buber, relação é reciprocidade, logo, somos afetados diretamente pelo bem que fazemos ao outro. As nossas obras nos edificam, as aulas que damos nos ensinam e sempre somos ajudados pela ajuda que prestamos. Desta forma, ao entrarmos em relação direta com a realidade do outro, estamos também sendo impactados.

Buber ainda nos diz que o Eu somente se reconhece como tal a partir do contato com um Tu. Quando na barriga da mãe o bebê age como se os dois fossem um só ser, e esta atitude permanece após o nascimento, com o bebê identificando a mãe como uma extensão de si mesmo.

Quando a mãe se afasta dele pela primeira vez ele chora, e esta atitude da mãe, provocando o trauma da separação, é que o faz perceber-se pela primeira vez enquanto um Eu, finito, separado da mãe, um outro ser, um Tu.

O teatro do Amor

Ao entrarmos em contato com nossa realidade, inclassificável, indizível, indescritível, sem forma e incrivelmente rica (a de todos nós) em sua totalidade, esta experiência nos impele naturalmente à vivência do amor.

O amor do qual falo não diz respeito aos sentimentos, mas sim à vivência total da relação com um tu, que é em si universal, dispensando quaisquer classificações: para ele não há rico e pobre, feio e bonito, baixo e alto, forte ou fraco.

O amor não é um sentimento. Os sentimentos ainda representam o que Buber se refere como a palavra princípio Eu-isso, ou seja, o contato com o mundo de acordo com a nossa própria objetivação do mesmo, nossas memórias, nossa cultura e nossas crenças. Sentimentos ainda são movidos em sua maioria por ilusões, na forma como são tratados por Buber na obra Eu e Tu.

A vivência do amor real, cósmico, universal, proveniente da vivência da relação por meio do princípio Eu-Tu, nascida do pensamento livre de amarras pode, de fato, ser capaz de mudar a vida do homem, pois passa a compreender a lógica de uma vida bondosa, virtuosa, muito além de qualquer moralismo, normatividade ou ditames morais, por mais bem intencionados que sejam.

A Cosmoética

Já para Vieira, na obra 700 Experimentos da Conscienciologia, a vivência do que ele chama de cosmoconsciência, podendo ser comparável ao que Buber descreve em sua obra, leva o homem a incorporar princípios cosmoéticos a sua vida, sem forçar nada, como uma segunda natureza.

Convido você a conhecer o site da Assinvéxis, uma instituição baseada na Conscienciologia, sem fins de lucro, que estuda a Inversão Existencial, uma técnica que visa auxiliá-lo, desde a juventude.

A ASSINVÉXIS visa estimular o debate de ideias, o estudo, a autocrítica, a autenticidade e a assistência ao outro em suas atividades, por meio da reflexão sobre a sua vida, o universo, o amor cósmico e sobre você, em si, e como leva sua vida a partir disso.

Referências

  1. ARENDT, Hannah. A vida do espírito – O pensar, o querer, o julgar. Trad. Antônio Abranches, César Augusto, Helena Martins, Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002b.
  2. _____. Eichmann em Jerusalém. Trad. Sônia Heinrich. São Paulo: Diagrama & Texto, 2001b.
  3. _____.Lições sobre a filosofia política de Kant. Trad. André Duarte. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993.
  4. _____.Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
  5. BUBER, Martin. Eu e Tu. Tradução do alemão, introdução e notas por Newton Aquiles. Von Zuben. 10. ed. São Paulo: Centauro, 2001.
  6. G.W.F. Hegel – Fenomenologia do Espírito – Prefácio, Introdução, Capítulos 1 e 2, São Paulo: Ed. Abril, Col. Os Pensadores, XXX, 1974, pp.9-81.
  7. PLATÃO. A República. Trad. Maria Helena Pereira. Lisboa: Fundação Caloute Gulbenkian, 1996.
  8. PLATÃO. O Banquete e Apologia de Sócrates. Tradução Carlos Alberto Nunes. Belém: Ed. UFPA, 2001.
  9. PLATÃO. Teeteto e Crátilo. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: Ed. UFPA, 2001.
  10. VIEIRA; Waldo. 700 Experimentos da Conscienciologia; Editares; Foz do Iguaçu, PR, 2013.
  11. WAGNER, Eugênia Sales. Hannah Arendt: Ética e Política. Cotia, São Paulo: Ateliê Editorial, 2006.
  12. ZISI. A Filosofia do Meio. Tradução do inglês, introdução e notas por Antônio Pitaguari. 1. ed. Foz do Iguaçu: Epígrafe, 2017.